Chapecoense
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E eu pensava que dor era o 7 a 1

A tragédia da Chapecoense nos faz olhar para o futebol e ver que todo sofrimento, no fundo, é pequeno

*O texto a seguir contém fragmentos fundamentais do livro O Meu Pé de Laranja Lima. Se você não leu livro e pretender ler, não continue.

Zezé é um gurizinho pobre, que vive no interior de São Paulo. Vive descalço, pé sempre preto embaixo. Sapato, só os de adulto, que ele engraxa de vez em quando pra juntar uns tostões.

Do pai, toma bofetadas; da mãe, ouve desaforos. Tem umas irmãs com pouca paciência e, assim, juntando tudo, da vida não lhe sobra nada.

De tão triste, diz ele mesmo que preferia ser atropelado na Rio-São Paulo e ficar todo esmagadinho.

Uma tarde, subindo em árvore pra catar goiaba, Zezé cai, com o pé nu, em cima de um caco de vidro e abre um talho na pele. Dói como nada havia doído antes. Se falar em casa, apanha mais ainda pela arte que fez, então Zezé sofre quieto, gemendo baixinho pra ninguém ouvir.

No dia seguinte, vai manquitolando a caminho da escola, devagar como quem pisa em coraçõezinhos. Um carro passa e, vendo o menino naquele sofrimento, encosta. Desce um português de bigode e barriga fartos, e propõe ajudar o guri. É a primeira vez que alguém se importa com Zezé. E é o debute dele dentro de um carro. O piá gosta tanto que até sonha no caminho pra farmácia. Chegando lá, mostra o talho pro farmacêutico e aguenta o que vem em seguida. Seringas, agulhas, fios, costuras, esponjas. Parece que lhe arrancam a alma pelos pés de tanto que dói.

É uma dor concentrada num único ponto, mas que irradia por tudo e faz o corpo tremer de frio e de febre. E o português, escondendo a cara triste, abraça o guri e ri da dorzinha que o acomete, sabendo, no fundo, que a vida sabe ser bem mais traiçoeira que aquilo.

Ali, daquela pequena tragédia particular do menino, nasce uma amizade verdadeira. O homem ensina que amor e carinho não são fábulas de livros infantis, e mostra que na vivência é dado sorrir de vez em quando.

Velho e menino, lado a lado, descobrem uma fatia nova da vida, com o senhor tendo a companhia que nunca mais teve e a criança descobrindo o amigo que nunca imaginou ter.

“A gente não pode escolher o pai antes de nascer. Mas se pudesse eu queria você, Portuga”, diz Zezé a certa altura.

O tempo passa, o pé fecha a ferida e o guri volta pra escola. Vai todos os dias de carona com o português naquele seu carrão potente, de lata preta sempre polida.

Até que um dia, sentadinho na sala de aula, chega a notícia: o Mangaratiba, trem que corta a cidade, pegou um carro no trilho e o pior aconteceu. Zezé estala os olhinhos e salta num só golpe da carteira. Vai, ainda mancando, com o corpo esguio driblando a multidão e ganhando terreno, querendo duvidar, temendo acreditar. À medida que Zezé corre, o coraçãozinho acelera sôfrego e desesperado. O guri chega no trilho e vê, inconfundível, o carro do Portuga. Ferro retorcido, sangue no chão e o Mangaratiba assassino soltando fumaça pelas ventas.

Ali, naquele segundinho ali, Zezé entende que dor não é apanhar do pai, levar puxão de orelha da mãe, ser ignorado pelas manas ou talhar o pé num caco de vidro. “Dor era tudo aquilo que doía o coração todinho. Eu queria ir pro céu e ninguém vai vivo pra lá.”

A história de Zezé vem do livro Meu Pé de Laranja Lima, texto fundamental de José Mauro de Vasconcelos e uma das obras primas da literatura brasileira. Lembrei dela quando vi o país inteiro dobrado e em prantos pela tragédia da Chapecoense.

O caco de vidro, as pancadas do pai e os infortúnios da vida de Zezé são o nosso Maracanazo, o nosso 7 a 1, as goleadas homéricas que o time da gente sofre uma ou outra vez na vida. Mas o Mangaratiba, o Portuga estirado no trilho do trem, a tragédia visceral que rasga a alma no meio é o acidente da Chapecoense.

Porque de repente, nenhuma das nossas feridas sabe doer mais. Tudo fechou rápido como se jogássemos um caminhão de bicarbonato e outro de merthiolate.

Somos um país que, ligeiro, esqueceu 1950, perdoou Barbosa, deu carta de alforria para a vergonha do Mineirão, ignorou que Roberto Carlos arrumava a meia, lançou no mar o pênalti perdido pelo Zico.

Somos uma nação que chora, do Oiapoque ao Chuí, as mesmas lágrimas e lambe as mesas feridas. Agora, e só agora,  nós sabemos o que é a dor pungente que, de tão forte, separa alma e espírito.

O nosso Mangaratiba em vez de trem, era avião. E vinha com o tanque vazio, soprando pelo vento, quietinho como se a morte tivesse passos de seda.

 

Foto de capa: Zero Hora

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Escrito por Velho Cronista

Do tempo em que o futebol era jogado de chuteiras pretas