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Velho Cronista: texto “O filho que eu quero ter”

O Velho Cronista é um colaborador do Blog Cerveja de Todos os Jeitos.

O filho que eu quero ter

Com aquela imagem borrada e turva não deu pra entender muita coisa. Não sei ainda se o desalinho era do aparelho médico ou se vinha mesmo dos meus olhos – marejados que tavam, queriam me contar a história errada. Eu só sei que o foi o doutor quem disse aquelas três palavrinhas que eu esperei a vida toda pra ouvir: “é um menino”.

Três palavras crescentes: uma letra, duas, depois seis e o O no final.

“É um menino.”

Aquilo teve um efeito em mim que ninguém sabe, ninguém nunca vai saber.

Fosse menina e eu estourava feliz do mesmo jeito, grato a Deus pelo que Ele tem feito. Mas seria uma alegria diferente, um outro contentamento.

Porque uma menina traz um tipo de deleite, aquela coisa mais paternal e protecionista. Menina já chega de lacinho na cabeça, charmosa, com o magnetismo que só as mulheres têm, e deixa o pai ali, de joelho no chão, vulnerável, embasbacado, peito aberto e braços escancarados.

Mas um guri traz outra euforia. Guri vem pintado da cor do time da gente, vem carregando bola, vestindo chuteira, sacudindo pavilhão. Guri vem pra ser filho, mas vem, sobretudo, pra ser companheiro de arquibancada.

Mas sabe, filho, que o pai tem um costume muito dele, que ninguém entende: eu gosto de ver jogo sozinho no estádio. Completamente sozinho. Só eu, ali, puro e cândido no meu próprio silêncio, sem ninguém puxando assunto. Se um amigo passa, o pai abaixa a cabeça e cola a orelha no rádio, que é pra não ouvir o chamado. Mas não é antipatia, não. É que jogo é coisa séria demais pra gente se distrair conversando. E amigo é coisa séria demais pra gente tratar assim, querendo olhar mais pra outra coisa que pra ele.

Então, pra ninguém ficar triste, nem o amigo e nem o futebol, o pai fica sozinho naqueles 90 minutos.

Mas você vem pra quebrar essa solidão em mim, filho. Com você vai ser diferente. A tua companhia eu quero. E quero sempre, sem falta, sem desvio, porque a arquibancada, você vai descobrir, é coisa séria e exige compromisso.

Eu quero você ali do meu ladinho, com os olhinhos curiosos, tentando entender o que acontece naquele gramado santo do Couto Pereira, que já foi pisado pelas botas de Zé Roberto, de Pedro Rocha, de Tostão.

Com a paciência de mil monges, eu vou explicar toda aquela confusão pra você, do impedimento à regra três. E esperto que você é – vai puxar a mãe, Deus queira – vai entender rapidinho por que essa loucura chamada futebol faz todo mundo voltar a ser criança e faz chorar e vibrar ao mesmo tempo e na mesma medida.

A nossa vida vai ser linda em família, eu você e a mamãe. Vai ter sorriso e graça como a gente nem imaginava que pudesse existir. E você vai ver, filho, que a vida é boa todos os dias. Mas que às quartas e aos domingos tudo se faz diferente – é dia de jogo. E aí, lá vamos nós dois, de mãozinhas dadas, teus passinhos pequenos e apertados caminhando pela Ubaldino do Amaral, meus passos largos se fazendo pequenos pra não perder o teu compasso. De longe, vamos ver as luzes dos refletores e vamos sorrir um pro outro, felizes, sabendo que a vida mora ali dentro.

Mas antes disso, muito antes da sua primeira ida ao Couto, você vai chegar à nossa casa. Vai ser a sua primeira e triunfal entrada. E a torcida do meu peito vai festejar com fogos, rojões, baterias, papel picado e sinalizadores, porque no peito da gente não tem lei que proíbe a alegria. E quando você abrir os olhinhos, vai ver ali, deitadinha no seu berço, com calma e preguiça, a verde e branca.

Essa camisa, perceba, meu filho, é mais que um trapo, mais que um tecido – é um segredo só nosso, um dos laços fortes que vai manter a gente junto. Vai ser assunto nas nossas conversas, vai ser choro e vai ser riso.

Então, vem logo, meu filho. Você é o troféu que vai encher o museu da minha alma.


Para ler estas e outras crônicas sobre futebol, acesse o site do Velho Cronista clicando aqui.

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Escrito por Velho Cronista

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