Referente à categorização de estilo de cerveja e também quando se trata de premiações, será que lá no início, quando os estilos foram criados, o plano era de orientação para as produções e criações de cerveja ou foi apenas uma forma de gerar buzz para a produção da bebida e, consequentemente, criar premiações e eventos voltados para isso?
É importante e necessário as cervejarias seguirem em suas receitas o que determinam os guias de estilo? Ou a criatividade da receita é o que importa?
As respostas não são tão fáceis e tão simples, mas nós pesquisamos algumas referências bibliográficas e consultamos especialistas do mercado, para falarmos um pouco mais sobre esse tema e também trazer a opinião deles.
Como tudo começou
“A Lei Seca americana tem grande influência na produção da cerveja caseira, como não era permitido comprar o produto, muitas pessoas começaram a fazer secretamente a sua própria cerveja em casa. Quando o comércio da bebida voltou a ser consentido, somente quem tinha licença poderia produzir cerveja, ou seja, as produções caseiras continuavam proibidas. Devido à Lei Seca, muitas cervejarias pequenas fecharam as portas e após a liberação da produção, sem condições de se reestruturarem, muitas foram vendidas para as grandes indústrias, criando essa concentração que existe até hoje”, conta André Junqueira, fundador e cervejeiro da Morada Cia Etílica.
Somente após muitos anos, na década de 70, alguns estados começaram a permitir, dentro de certos limites, a produção caseira da bebida para consumo próprio. Assim, o grande impulso da expansão e renascimento da cerveja artesanal veio das mãos desses cervejeiros caseiros que dominavam a técnica de produção. “A competição é um hobbie que já está enraizado na cultura americana. Lá existe campeonato para as mais diversas modalidades, logo a cerveja não poderia ficar de fora dessa cultura e foi nesse berço que surgiu o guia de estilos do BJCP (Beer Judge Certification Program)”, comenta André.
Mas antes disso, a primeira classificação de cervejas que se conhece foi publicada em 1977, no livro The World Guide to Beer do jornalista Michael Jackson, que pesquisava bebidas à base de malte, tanto uísque quanto cerveja. O jornalista fez um grande relato a respeito do que ele encontrava nos países e regiões que visitava, tornando-se conhecido como The Beer Hunter (o caçador de cervejas) e uma das principais referências no assunto.
Com a junção dos diversos materiais, não só de Michael Jackson, como de demais autores, foi criado um grande quadro de estilos Ale, Lager, de cervejas mais claras, mais escuras, etc.
“Aqui existem até algumas curiosidades de estilos que foram ressuscitados pela criação do guia de estilos, como a cerveja Porter. Na época, década de 70/80, praticamente mais nenhuma cervejaria no mundo produzia a Porter, logo não existiam exemplos do estilo, e foi durante a criação do guia que perceberam a lacuna entre Brown Ales e Stouts. Com pesquisas de relatos históricos de cervejas que haviam existido, resolveram ressuscitar o estilo Porter, o qual passou a ser produzido seguindo os padrões classificados pelo guia”, explica André Junqueira.
O BJCP é uma das classificações mais aceitas mundialmente, tratando-se de uma organização sem fins lucrativos fundada no estado do Colorado (Estados Unidos), em 1985, durante a American Homebrewers Association Annual Conference, justamente para certificar críticos e avaliadores de cerveja. Outras referências para a classificação de estilos são a Brewers Association (brewersassociation.org), a RateBeer (ratebeer.com) e a BeerAdvocate (beeradvocate.com).
“O objetivo de classificar as cervejas em estilos é descrever os parâmetros daquelas que são referência na cultura cervejeira, ajudando o consumidor a escolher entre diferentes rótulos e servindo de guia para jurados e competidores nos concursos cervejeiros. O propósito – deve ficar claro – não é desqualificar aquelas bebidas que não se enquadrem nos estilos existentes”, trecho do livro Larousse da Cerveja, de Ronaldo Morado.
Pontos de vista sobre estilo de cerveja
“O guia de estilo de cerveja é muito utilizado para se falar sobre as características de aroma e sabor da cerveja. Sem sombra de dúvida, existir essa convenção nos ajuda muito a ter um diálogo facilitado. Por exemplo, quando falamos em Brown Ale, a pessoa já tem uma noção do que aquele estilo significa. Apesar disso, eu vejo que muitos cervejeiros acabam tomando aquilo como regra do que a cerveja é, tendo aquilo como um limite dos exemplares possíveis de serem feitos. Mas não é bem assim. A cerveja é infinita. Vejo que muitos esquecem que o ponto de origem da criação dos estilos de cerveja foi muito mais para criar uma sistemática de concursos, pois a título de comparação, não é cabível fazê-la sem um parâmetro. O que percebo também é que muitos cervejeiros produzem a bebida como uma expressão artística e isso não é quesito de julgamento. As cervejas da Morada não levam nome de estilo no rótulo. Nos importamos mais com as percepções sensoriais do degustador do que com as diretrizes que determinam o estilo”, afirma André Junqueira.
Os atuais guias de estilos têm pouco mais de três décadas, enquanto a cerveja caminha com a humanidade há muito mais tempo que isso, há vários milênios que cada vilarejo ou região já produzia sua cerveja de acordo com os costumes, ingredientes e tecnologias que tinham à disposição. Logo, essa padronização das cervejas é muito recente na história da bebida.
“Acho a categorização importante para informar o público. O nosso mercado é muito novo. Apesar de já estarmos há 16 anos trabalhando com cervejas, o público ainda precisa ser ensinado e os estilos ajudam a entender as diferenças e identificar as preferências. Com isso, fica mais fácil dele ‘se achar’ meio a tantas opções”, opina Daniel Wolff, fundador e diretor da rede de lojas de cervejas artesanais Mestre-Cervejeiro, sommelier de cervejas e juiz internacional de cervejas.
Sobre ser importante e necessário as cervejarias seguirem em suas receitas o que determinam os guias de estilo, ou se a criatividade da receita é o que importa, Daniel explica que depende da estratégia de cada um. “Para o mercado, vejo que o mais importante é a qualidade. Se a cerveja está livre de defeitos sensoriais, está equilibrada – mesmo sendo um estilo potente -, se está entregando valor para o consumidor. Contudo, tudo vai depender da estratégia de cada cervejaria, e como eles querem se posicionar no mercado. Não somos nós que vamos dizer para um empresário o que é certo ou errado”, conta.
“Estilo de cerveja também serve para balizar as competições, estabelecendo parâmetros de aromas, sabores, entre outros, que aquele estilo deve seguir para ser premiado. Mas não serve só para isso. A definição mais ampla de estilo de cerveja seria algo como uma convenção, assim como as línguas são compostas por palavras que servem para nos comunicarmos, e uma vez que estamos em uma convenção nos entendemos. Então, o estilo serve também para ser essa referência para fins de comunicação do mercado cervejeiro. Por exemplo, se eu falo em Weizenbier, estando na mesma convenção, você entende que é uma cerveja de trigo, alemã, que traz notas de banana e cravo, servida em um copo grande, muito popular nos biergardens, etc. Se você não estiver nessa convenção, não vai entender. Estabelecer esses conceitos e convenções é essencial para a comunicação dentro do mercado cervejeiro. Quem acha que os estilos servem só para concurso, talvez esquece de todo esse histórico comunicativo que eles desempenham até hoje”, comenta Luís Celso Jr., jornalista e beer sommelier.
“O que se deve ter em mente é que para se ter uma boa cerveja independe de um guia específico, o que é principalmente feito pelos cervejeiros caseiros, que possuem o livre arbítrio para executarem sua cerveja como preferirem. Mesmo se nos guias estiverem recomendando 4 a 5% do teor alcoólico, nada o impede de aumentar ou diminuir de acordo com seu próprio paladar. Mas na indústria vejo de forma diferente. Não só como forma de premiar cervejarias, mas padronizar um determinado estilo e facilitar a identificação do consumidor final, há a necessidade de seguir uma diretriz que é extremamente necessária e deve ser utilizada por todos os fabricantes registrados de cervejas. Por outro lado, não se deve impedir a linha de inovação, pois nos tempos atuais todos os apreciadores dessa arte buscam novidades e é isso que faz o mercado de cervejas especiais continuar crescendo, independente de premiações”, conta o mestre cervejeiro Arthur Müller.
O fato é que hoje em dia nós precisamos dessa categorização, é a forma como conseguimos nos orientar acerca do produto que estamos degustando. Mas será que as cervejarias escolheriam os produtos que efetivamente produzem se essas premiações não existissem? Será que novas receitas estariam sendo criadas sem a preocupação de torná-las um rótulo que pudesse entrar para uma competição? Possivelmente não existe uma resposta exata para essas perguntas, apenas deixamos aqui alguns pontos de reflexão sobre os estilos de cerveja.
Saison ou Farmhouse Ale – o mais democrático dos estilos de cerveja
Toda essa discussão sobre estilo de cerveja nos fez pensar em uma criação de receitas que explorassem muito mais as bebidas e os ingredientes com os quais foram feitas, proporcionando experiências de degustação bem diferentes para o consumidor.
Conhecido como Saison ou Farmhouse Ale, esse tipo de cerveja pode ser considerado o mais democrático de todos. No guia de estilos é determinado que o rótulo referência desse estilo é a Saison Dupon, caracterizada como uma cerveja complexa tanto no aroma quanto no sabor, devido à enorme variedade de temperos que lhes são adicionados. São bastante carbonatadas e refrescantes, com um equilíbrio entre o amargor do lúpulo, a doçura do malte e a acidez final.
Mas as cervejas do tipo Farmhouse vão além do que um simples perfil de sabor ou o uso de um ingrediente específico. Elas fazem referência a bebidas produzidas em fazendas para o consumo próprio dos moradores do local e também das pessoas que trabalhavam por lá em épocas de plantio ou colheita.
“As cervejas Saison eram produzidas com ingredientes abundantes da região em determinados períodos do ano. Com isso é muito difícil de estabelecer um perfil de sabor e aroma específico para ela, pois isso dependia largamente da região onde foi produzida, do que cultivava e havia disponível naquela fazenda. Esse também não é um estilo de uma localidade pequena, ou um único lugar, eram produzidas no norte da França, na Bélgica e ainda na Holanda. Ou seja, uma área relativamente grande onde essas cervejas não eram produzidas do mesmo jeito, mas com a mesma ideia de aproveitamento das sobras de produção da fazenda, e para que fossem consumidas durante o ano todo. Logo, o padrão de aroma e sabor dessa bebida está muito vinculado com a região onde era feita. Além disso, é um estilo que veio bem antes da era industrial e não está amarrado a padrões de produção. Para mim, Saison é muito mais do que um estilo, ele é um conceito”, explica André Junqueira.
Mas se essas fazendas fossem em solo brasileiro?
Se o Brasil tivesse, desde seus primórdios, essa cultura de produção de cerveja, assim como nas fazendas da Idade Média, com os ingredientes locais e feitas para o consumo anual, como seria esse cenário por aqui?
O Clube do Malte e a Morada Cia Etílica encararam esse desafio. Pensando que o Brasil é um país muito grande, muito além de imaginar como seria uma Farmhouse produzida aqui, imaginaram como ela seria nos diversos locais e biomas brasileiros – regiões que compreendem grandes ecossistemas constituídos por uma comunidade biológica com características semelhantes. Assim surgiu a ideia de aprofundar um estudo sobre esses biomas e usá-los como tema para compor as receitas que poderiam ser Saisons produzidas nas diferentes regiões do país. Então surgiu a coleção Saison Mata Atlântica, Cerrado, Floresta Amazônica e Caatinga.
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